sábado, 10 de novembro de 2012

A Flauta e o Sabiá

Em rico estojo  de veludo, pousado  sobre uma mesa de xarão, jazia uma flauta de prata.
Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola, suspensa do teto, morava um sabiá.
Estando a sala em silêncio e descendo  um  raio  de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente, modula uma volata. Logo a flauta escarninha põe-se a casquinhar no estojo, como  a zombar do  módulo cantor,  silvestre.
__ De que te ris? Indaga o  pássaro. E a flauta, em resposta:
__ Ora esta! Pois tens coragem de lançar tais guinchos diante de mim?
__ E tu quem és,  ainda que mal pergunte.
__ Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou  a flauta. Meu inventor, Marsias, lutou com Apolo e venceu-o, por isso  o deus, despeitado, imolou-o. Lê os clássicos.
__ Muito prazer em conhecer... Eu sou um mísero sabiá da mata. Pobre de mim! Fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que lá foi.
Dize-me: que fazes tu?
__ O  ofício rende pouco. Eu que o diga que não faço outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar __ e antes nunca houvesse aberto  o bico, porque, talvez, sendo mudo não me houvessem escravizado __ Si, ouvindo a tua voz, convencer-me de que és superior a mim. Canta! Que eu aprecie o teu gorjeio e farei como for de justiça.
__ Que eu cante...?!
__ Pois não te parece justo o meu pedido?
__ Eu canto para regalo dos reis nos paços, a minha voz acompanha os hinos sagrados nas igrejas. Ao rítimo dos meus  delicados trilhos bailam as damas, guiam-se as endeixas das serenatas de amor, ao  luar. O meu canto é a harmoniosa inspiração dos gênios ou a rapsódia sentimental do povo.
__ Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouví-lo e para proclamarte, sem inveja, a rainha do canto.
__ Isso agora não é possível.
__ Não é possível! Porque?
__ Não está cá o artista.
__ Que artista?
__ O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem ele nada posso fazer.
__ Ah! É assim...?
__ Pois como há de ser?
__ Então, minha amiga __ modéstia à parte __ vivam os sabiás! Vivam os sabiás e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do próprio peito o alento com que fazem a melodia. Assim, da tua vanglória há muitos que se ufamam. Nada valem si os não amparam, não cantam si lhes não dão sopro, não si os não empurram. O sabiá voa e canta __ vai à altura porque tem asas, gorjeia porque tem voz. E sucede sempre serem os que vivem  do prestígio alheio, os que mais alegam triunfos. Flautas... Flautas... Cantas nos paços e nas catedrais... Pois vem daí a um duelo comigo.
E, ironicamente, a toda voz, pos-se a cantar o sabiá e a flauta de prata, no estojo de veludo... moita! Faltava-lhe o sopro.

Fabulário - Porto - 1907 - Livraria Chardron, Lelo & Irmão.

--xx--

Recontada por Coelho Neto no livro Antologia Brasileira - Seleta em Prosa e Verso de Escritores Nacionais-  Professor Eugênio Werneck
Edição atualizada - 26a. Edição - 1948
Livraria Francisco Alves - Editora Paulo de Azevedo Ltda - Rio de Janeiro - RJ

Conservei a originalidade do texto como Coelho o escreveu.
    

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada por seu comentário!